Escravatura Global – Manuel Giraldes

Setembro às 7:53 pm | Publicado em denúncia, escravatura, exploração | 2 comentários

Além-Mar
Abril, 2003

Há 145 anos, uma lei anunciava a abolição da escravatura em todo o Império português. Em 1948, a Carta Internacional dos Direitos do Homem consagrava a escravidão como um atentado à dignidade da pessoa humana. Em 2003, calcula-se que, um pouco por todo o mundo, 27 milhões de escravos contribuem com a sua desgraça para a opulência da economia global. Infelizmente, às vezes parece que o tempo anda para trás.
É comum pensar-se, com um arrepio de indignação e alívio, que a escravatura é um bárbaro crime contra a humanidade arrumado algures nos poeirentos arquivos do passado. Navios cheios de negros acorrentados? Ah, até vi num filme histórico do Spielberg. Homens, mulheres e crianças a trabalharem nos campos, de sol a sol, sob a mira das armas? Ufa! É certamente coisa de romance antigo, tipo “A Cabana do Pai Tomás”. Infelizmente, não é assim. Mudaram os transportes, as grilhetas, os tipos de coacção, mas a escravatura é um fenómeno dos nossos dias. Que não só tende a aumentar como a adquirir formas – se é possível cometer o anacronismo de comparar épocas e estilos de vida tão díspares – cada vez mais graves.
Calcula-se que, neste preciso momento, um pouco por todo o mundo, 27 milhões de pessoas se encontrem acorrentadas a tão desumana sorte. As correntes que as prendem não são de ferro, mas podem ser até mais fortes e mais penosas. Porque, dantes, o escravo era um «bem» caro e raro, e por isso mesmo merecedor de certos cuidados. Mas, nos tempos que correm, a própria lei da oferta e da procura se encarregou de embaratecer e de desvalorizar o “produto”: com a explosão demográfica, o aumento da pobreza e da exclusão social geradas pelo sempre crescente alargamento do fosso que separa ricos e pobres, o torrencial fluxo de imigrantes que se sujeitam a tudo para tentarem encontrar na metade abastada do mundo um modo qualquer de subsistência, “matéria-prima” não falta. E se o escravo moderno enfraquece ou adoece, deita-se fora e arranja-se outro. Que as prateleiras dos armazéns globais estão cheias de gente desesperada.
Nos escaparates, como sempre, pode escolher-se entre homens, mulheres e crianças. Estas são particularmente apreciadas, porque são mais dóceis, comem e protestam menos, dormem em qualquer canto e, como é necessário menos força para obrigá-las a trabalhar, dão menos dores de cabeça a capatazes e vigilantes. Meninos escravos propriamente ditos haverá no mundo cerca de 8 milhões. Não muito longe desta condição, encontram-se os 111 milhões de menores de 15 anos que executam tarefas impróprias, perigosas ou demasiado árduas para a idade.

A moral do lucro

Mas não. Não se confunda. Quando se diz: “O miúdo trabalha que nem um escravo”, não quer dizer que o seja. Para sê-lo, realmente, é preciso que exista – na definição do especialista Kevin Bales – “o controlo total de uma pessoa sobre outra, com fins de exploração económica”. Dantes, tal controlo passava pela compra ou pela posse. Hoje, não só não é preciso, como até é “anti-económico”.
Explica Bales, um professor da Universidade inglesa do Surrey, que correu o mundo a estudar a escravatura moderna: “Hoje, quando as pessoas compram escravos, não pedem um recibo nem títulos de propriedade, mas adquirem o controlo – e usam a violência para manter esse controlo. Os escravocratas têm todos os benefícios da propriedade sem as responsabilidades legais. Na verdade, para os escravocratas, não ter a posse legal é uma melhoria, porque obtêm o controlo total sem qualquer responsabilidade por aquilo que possuem (…). A escravidão é uma obscenidade. Não se trata apenas de roubar o trabalho de alguém; trata-se do roubo de toda uma vida. Está mais estreitamente relacionada com o campo de concentração do que com questões de más condições de trabalho.”
Em Gente Descartável. A Nova Escravatura na Economia Mundial (de Kevin Bales – Editorial Caminho, Nosso Mundo, Lisboa, 2001), o especialista estabelece bem a diferença entre as trágicas imagens que nos foram legadas pelo passado e a talvez ainda mais trágica realidade actual: “Na nova escravidão, a raça tem pouco significado. No passado, as diferenças étnicas e raciais eram usadas para explicar e desculpar a escravatura. Essas diferenças permitiam aos escravocratas inventar razões que tornavam a escravatura aceitável, ou até uma boa coisa para os escravos. A diferença dos escravos tornava mais fácil usar a violência e a crueldade necessárias para o controlo total. Essa diferença podia ser definida quase de um modo qualquer – diferente religião, tribo, cor de pele, língua, costumes ou classe económica (…). Hoje, a moralidade do dinheiro supera todas as outras considerações. A maioria dos escravocratas não sente a necessidade de explicar ou defender o método de recrutamento ou de gestão do trabalho que escolheram. A escravatura é um negócio muito lucrativo, e um bom lucro é justificação bastante.”

Segue: Gente barata

2 comentários »

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  1. que coisa estranha que as pesoas fazem ao mundo

  2. este texto me ajudou bastante obrigado


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